– Dessa forma, preferimos romper o contrato.
– Perfeito, basta apenas enviar por e-mail a formalização do distrato.
A resposta estava mais do que ensaiada. Em mais uma reunião de análise da parceria, a decisão já era certa. Não houvesse o posicionamento da contraparte, tinha o desfecho certeiro. Não por qualquer problema com as entregas realizadas – que, aliás, tinham por regra superar as expectativas previamente alinhadas. O ponto fundamental foi a desconexão de valores entre cliente e fornecedor. E, para mim, a fornecedora da história, já não fazia mais sentido a submissão àquelas circunstâncias.
Submissão. Palavra forte, porém, necessária para o entendimento das relações de trabalho. Celetista, prestador de serviço, fornecedor, parceiro, colaborador, funcionário, mão de obra, subordinado, terceiro. São muitos os termos para designar o relacionamento de pessoas vinculadas por interesses comerciais. Alguém com uma demanda a ser atendida e outrem com a oferta ali necessária. Quem tem a demanda, possui disponibilidade financeira – vai desembolsar dinheiro para a contratação da solução de um problema. Quem tem mais dinheiro, tem mais poder. Poder de negociação, de barganha, de determinação de regras. Quem tem menos dinheiro, e busca a contrapartida financeira por sua força de trabalho, se vê mais fragilizado – e tende a se sujeitar às condições estabelecidas.
Este pode parecer um retrato deveras antiquado. Vivemos em tempos de organizações humanizadas, empresas pautadas por práticas e políticas ASG – que zelam por aspectos ambientais, sociais e de governança; negócios dirigidos por propósitos nobres, a serviço de causas maiores, uma nova economia na qual o que realmente importa são as relações e as contribuições ao bem comum. O discurso é uma maravilha, e certamente há muitos líderes que se empenham diuturnamente para conquistar real coerência neste cenário tão desafiador. Mas, a maioria absoluta das estruturas organizacionais, não colaboram para esse fim. Aí a coisa complica.
Fazer o que fala, e falar o que faz, eis uma definição simplificada deste conceito tão complexo que é a coerência. Aliás, quão maior a coerência de algo ou alguém, menos é preciso que se realize discursos para propagá-la. Quanto mais efetiva, mais silenciosa se torna. Muito melhor do que ser apregoada, é quando conseguimos experienciar a coerência por gestos e ações. Já a sua antítese produz um gosto amargo e prolongado, porém difuso, pois nem sempre fica evidente o que realmente se encontra em destempero.
Ao longo de minha vida profissional, seja por vínculo de trabalho ou de prestação de serviço, trafeguei em ambientes variados – sua ampla maioria do tipo que se empenhava em propagandear missões honrosas (e muitos deles, de fato, buscavam esse Norte). Certa vez, ouvi de alguém, um comentário de uma lucidez assombrosa: “Já fui muito explorada em outros lugares. Mas aqui dói mais, porque falam que não existe exploração”. Ou seja, a incoerência chega a agredir tanto quanto a própria exploração. Se há um jogo, que as regras sejam, pelo menos, claras para todos – inclusive para os participantes que não têm poder, influência ou autonomia para mudá-las.
Há situações que vão além e, relembrando hoje, até parecem piada. Já pensou uma empresa contar com voluntários? Não estou falando de funcionários que se voluntariam para uma ou outra ação social, não… Falo mesmo é de gente vinculada ao objeto social, pessoas que põem a mão na massa para realizar a entrega do negócio, aceitando não receber nenhuma contrapartida financeira. Sim, a vida não se resume a dinheiro, eu bem sei, mas não parece um jogo muito desequilibrado e injusto termos, de um lado, sócios investidores que acumulam lucros representativos e, de outro, gente novata e iludida, que dispõe de tempo, energia e competências, unicamente por “amor à causa”?
Programas de trainees onde lideranças bradam, de peito aberto, que os candidatos deveriam estar pagando para usufruir tamanho aprendizado, ao invés de contar com qualquer ajuda de custo ou plano de benefícios – essa era a justificativa descarada pelas baixíssimas remunerações oferecidas. Pura exploração travestida de benevolência.
Mas, por que há quem se submeta a tais situações? Aliás, por que eu mesma me permiti viver contextos que, hoje, parecem tão surreais? A resposta óbvia é: medo. Medo de não conseguir nada melhor. Medo de ficar sem renda. Medo de desagradar o chefe. Medo do julgamento dos outros. Medo de tomar a decisão errada. Medo da inadequação. Medo da própria fragilidade. E o medo paralisa.
Melhor um pássaro na mão, do que dois voando. Foi essa a “sabedoria” popular que influenciou muitos de nós. Remete ao conformismo, à restrição, à resignação. Aliás, pra que um pássaro na mão? Bom mesmo é ver a passarada ocupando os céus em bando. Por que escolher a gaiola, quando nos é possível o voo? Mas, toda uma vida – e uma sociedade, habituada a cortar as asas, não permite a ousadia da busca pela liberdade. E isso é muito conveniente aos donos de gaiolas – mesmo daqueles viveiros grandes e espaçosos, que até parecem um habitat natural. Mas não são.
Quando a gente enxerga a grade, não dá mais para voltar atrás
Não existe liberdade absoluta, e a utopia que venho provocar nem se intenciona a tal magnitude inalcançável. Quando superamos uma grade, notamos que há várias outras ao redor. Questionar as restrições impostas tem mais a ver com a reflexão sobre as regras do jogo que desejamos jogar. No caso do “jogo do trabalho”, regras visceralmente vinculadas ao nosso modo de ser no mundo – 44 horas semanais em um ambiente determinado por regras tácitas e explícitas, ajuda a forjar grandemente o ser humano que nos tornamos.
E quem é o ser humano que gostaríamos de nos tornar? Nem sempre sobra tempo ou energia para pensar a respeito…
A serenidade de um distrato só foi possível depois de algumas rupturas. Serenidade é sim um pouco de exagero, pois houve certo destrato na situação, com o perdão do trocadilho. Eu não tinha uma ideia muito exata de meus desejos (talvez ainda nem tenha), mas carregava plena convicção sobre aquilo que não fazia mais sentido para mim. Desconhecia as possibilidades, mas havia descartado, sem apego, aquilo que restringia o meu próprio voo. E, principalmente, as experiências me ajudaram a entender qual era o tipo de companhia que eu queria para mim.
Saindo da beleza filosófica das elucubrações, veio o banho de água fria em uma conversa sem meias palavras, com um amigo estimado e empresário bem-sucedido: “Então agora, você cansou de ter um chefe filho-da-puta e decidiu ser a chefe filha-da-puta, é isso?”.
Não, definitivamente não era isso. O plano não poderia ser assim, tão simplório. Reproduzir as estruturas que eu intencionava me libertar, apenas mudando de cadeira? Primar unicamente pelo meu bem-estar, sujeitando outros a condição que a mim não servia? Por que desejar, ou infringir, aos outros àquilo que eu evitava para mim? O velho lance do oprimido que sonha se tornar o opressor? Não, isso não faria nenhum sentido.
As estruturas limitam as relações. Contudo, há formas variadas de limites que podemos construir. Há de se questionar as margens e limitações impostas.
Uma organização tradicional tem um regime societário pautado no poder financeiro. Quem tem mais cotas, possui maior poder de mando. Sócios majoritários é que tomam as decisões, no final das contas. Eles é que carregam os riscos do negócio e, em compensação, recebem a maior fatia dos resultados – o que até pode ser justo. Podemos enfeitar o pavão o quanto desejarmos, mas a lógica da estrutura é essa. E ponto. O modelo pode ser participativo, as pessoas podem colaborar na construção dos valores organizacionais, é possível ter flexibilidade nos cargos e nas cargas. Mas, no fim do dia, manda quem pode e obedece quem tem conta para pagar.
E era isso que não cabia mais na minha vida.
Dica 1: Para empreender uma cooperativa, é preciso ter muita clareza daquilo que não se quer. A confusão acerca do que é desejável, é mais do que natural – o caminho se faz à medida que avançamos os passos. Porém, há de se ter certas convicções das trilhas que desejamos evitar daí pra frente. E seguir! De preferência, em boas companhias.
As dores do mundo – ou de uma parte dele
Chega uma fase da vida que a gente para pra pensar no que estamos fazendo de nosso precioso tempo. Aliás, quando é possível ter o mínimo de paz de espírito para essa reflexão – ou quando estados físicos ou mentais nos obrigam a certas paradas.
No auge de meus vinte e poucos anos, esse tempo inexistia. No frenesi de trabalhar duro e conquistar o diploma de graduação, a vida simplesmente acontecia – um dia depois de outro, com uma curta noite no meio. Uma carreira interessante e muitos aprendizados acumulados. Mas certa sensação de ter nadado toda uma maratona de olhos fechados. Há de se ter a consciência de tirar a cabeça da água, de quando em vez, para checar se o caminho é o mais adequado. Afinal, a vida não conta com aquelas raias demarcadas, para direcionar nossos objetivos e intenções.
Recobrar o fôlego, olhar ao redor, reconhecer o lugar conquistado. Refletir se é mesmo o espaço desejado, no tempo presente – porque, certamente, aquilo que vislumbramos como propósito ao longo da vida, graças a Deus, é mutável como nós. Portanto, é possível ter alcançado determinada condição, status, situação, função – e essa conquista deixar de fazer sentido, à luz dos desejos do hoje.
Seria apenas excesso de problematização? Mera falta do que fazer? Aflições pequeno-burguesas provocadas por algum vazio existencial? Simples falta de terapia? Hipóteses plausíveis, quando observadas de modo isolado.
O ponto é que, ao tirar a cabeça de dentro da água, não enxerguei o lugar que pretendia ir. Mas notei uma porção de outras pessoas, buscando igualmente novos horizontes. E a solução não estava em encontrar aonde ir. A resposta residia na busca conjunta de encontrar qual seria esse lugar – ou, em sua inexistência, quem sabe até construí-lo.
Curiosamente, assim como eu, uma porção de pessoas de meu convívio viviam uma inquietação semelhante. Desgostosos do lugar alcançado (e, em geral, estamos falando de bons lugares, até mesmo privilegiados – sob a ótica do senso comum). Um povo que tinha escolhido o que já não queria mais para a própria vida. A escolha precede a ação, portanto, muitas queixas eram servidas como acompanhamento em inúmeros cafés, em geral amargos, que serviam de desculpa para longas conversas-desabafos com amigos e colegas de profissão.
A sensação compartilhada era que os desequilíbrios percebidos faziam não mais valer a pena a situação posta. Algum desgaste que fez as relações de trabalho chegarem a um limite não mais aceitável. Para alguns, deixava de ser tolerável a convivência com o chefe vaidoso e centralizador; para outros, nascia a indignação pela consciência do volume de riqueza produzida e a desproporção de sua recompensa financeira individual; havia ainda aqueles que desejavam maior liberdade sobre o seu tempo, questionando a necessidade de controles rígidos da jornada de trabalho; outros que apenas queriam distribuir suas vocações em contextos diferentes, transformando um lazer ou interesse diferenciado em fonte de renda.
Os motivos eram os mais variados. Mas o sentimento similar era de desencaixe – como se estivessem tentando fazer caber um elefante dentro de um fusquinha. E não, diferente da piada infame, não dava para fatiar o elefante nesse caso…
Diante de problemas comuns, as pessoas acabavam se propondo soluções muito similares. Impressionante atestar o quanto somos previsíveis! Aquele meu amigo empresário realmente havia antecipado o caminho óbvio e tentador diante do cansaço à sujeição a um modelo de trabalho arcaico: a maneira evidente de evitar ter um chefe escroto era se tornar o próprio chefe (à priori, sem adjetivos deselegantes, com fé e esperança de conseguir transmutar o modelo, em caráter de exceção).
Esses mesmos colegas, incomodados com os lugares atuais, estavam em um mesmo fluxo de empreender seus próprios negócios. Cada qual à sua maneira, impondo suas próprias regras e determinando a qualidade de suas relações. Ser o dono do próprio negócio era a resposta, praticamente unânime. Aqui e ali, a busca por parceria, sem muito compromisso – mesmo porque, “gente é um troço complicado”, era o que muitos me diziam (hei de concordar, confesso humildemente).
A imagem mental que me acompanhava, nessas conversas, era de uma dança de roda. Por que dançar sozinho, se a gente pode dançar junto?
No ambiente profissional, naturalmente acabei me vinculando a pessoas com interesses semelhantes: uma turma que atuava com educação corporativa. O passo óbvio, segundo eles, era constituir suas próprias empresas de consultoria e seguir a vida, num modelo de trabalho mais independente e multitarefas. Eventualmente buscar conexões e parcerias para o atendimento de demandas específicas, mas mantendo a premissa fundamental de resguardar a própria liberdade – em seus mais variados sentidos. Liberdade de tempo, de escolha de projetos, de local de atuação. Liberdade financeira, de poder ganhar o quanto for capaz. Tão lindo ouvir falar sobre a vida “perfeita-e-se-defeitos” que a gente projeta em nossos sonhos, né?
A liberdade é preciosa. Mas, carrega em si, a complexidade do “pagar pra ver”.
Liberdade de tempo? Empreender é renunciar a muitas horas vagas, para tornar um novo negócio relevante e reconhecido.
Liberdade de escolha? O medo do fracasso nos impele, muitas vezes, a aceitar o que vier, pois a incerteza é companhia nem sempre confortável.
Liberdade financeira? O céu é o limite para quem resolve ter o seu próprio empreendimento. Mas o inferno fica na vizinhança, quando os recursos próprios vão escasseando e as contas não param de chegar.
A liberdade do voo vem sempre acompanhada do medo de faltar alpiste.
Dizem que o pássaro não confia cegamente nos galhos em que faz parada – mas confia, sim, é em suas próprias asas, que garantem a possibilidade de voar. Só que, verdade seja dita, voar cansa – e trabalhar dá trabalho. Pelo redundante que pareça, ainda trombo com gente que tem a esperança de ter sucesso sem precisar se empenhar. Tenho pra mim que isso é privilégio de alguns herdeiros, e olhe lá.
Prospectar novos clientes, identificar e se antecipar às demandas, cuidar da imagem institucional, idealizar soluções, realizar entregas, estudar, se manter atualizado, emitir notas fiscais, gerenciar o fluxo de caixa, negociar com fornecedores, avaliar os projetos, manter a documentação em dia, estar adimplente com o fisco, analisar os relatórios contábeis, realizar alinhamentos com parceiros, manter uma presença relevante nas redes sociais, idealizar inovações, produzir conteúdo para o site, o blog, o LinkedIn, dar feedback para a agência, negociar a tarifa bancária, fazer o estudo de sazonalidade, cobrar a fatura inadimplente, revisar propósito-valores-missão-visão, participar do congresso importante, pagar o coworking, planejar o próximo ano, ir ao evento celebrativo daquele cliente…
O desejo de livrar-se daquilo que parece não fazer mais sentido, pode nos levar a uma imensidão de desafios que, quase nunca, nos damos conta antes de nos lançarmos a empreender. Impossível, jamais seria – em todo canto há infinitos exemplos de gente de sucesso. Porém, o despreparo e a falta de uma efetiva e viável rede de apoio, faz muita gente voltar arrependida, para o conforto da gaiola. Precisa ser assim?
A dança de roda nos convida a ouvir a mesma música, encontrar o compasso e dançar juntos. A velha máxima de que “ninguém solta a mão de ninguém”. Quando pensamos em empreender, pensamos naquilo que carregamos de talento especial, e é reconhecido por algum grupo de clientes – o que dá conta de, no máximo, meia dúzia das tarefas listadas logo acima. Para todas as outras tarefas, a cara e a coragem são combustível suficiente? Podem ser, sem dúvidas.
Mas, e se houvesse um jeito de tirar proveito do que há de bom nos modelos de organização tradicional, sem precisar se submeter a ele? E se houvesse uma forma das pessoas se ajudarem, naquilo que têm de melhor, e dividirem o fardo no que for mais desafiador?
E se pudéssemos levar ao almoço os ingredientes disponíveis em nossa geladeira, juntando com aquilo que os demais têm a oferecer? Será que não dá pra compor um banquete, no qual todos tenham condições de se servir e ficar saciados?
Dá! E dá pra fazer isso a partir de um modelo de negócios consagrado, mas pouco difundido (vai saber o porquê…): o cooperativismo.
Dica 2: Nem sempre estará claro o propósito de um grupo que decide empreender uma cooperativa. Ao congregar pessoas em prol de uma iniciativa deste tipo, fundamental mesmo é o nível de confiança das relações entre os sócios fundadores. Se voar em céu aberto pode parecer perigoso (e é), a passarada precisa compor, por si só, ambiente seguro para fortalecimento – individual e coletivo.