Precarização do trabalho: o que é e como o cooperativismo pode combatê-la

por | 26-06-23

A era digital mudou nossas vidas para melhor em muitos aspectos. Ficou muito mais fácil pedir comida, requisitar um motorista, alugar um quarto ou contratar um profissional autônomo. Tudo isso com praticidade e poucos cliques. Mas nem tudo são flores: as mesmas plataformas que possibilitam essas comodidades são responsáveis por um novo tipo de precarização do trabalho. 

Precarização do trabalho é quando, de forma sistemática, o ambiente econômico gera condições prejudiciais aos trabalhadores, como, dentre outros:

  • Ausência de direitos trabalhistas
  • Trabalho informal e imprevisível
  • Remuneração ruim e fragilidade financeira
  • Situações de trabalho insalubres
  • Jornadas de trabalho excessivas
  • Ausência de uma rede de segurança

A precarização do trabalho na era digital, com isso, tem uma forte relação com a economia dominada pelas plataformas, como iFood, Uber, Rappi e AirBNB. Em meio a um ambiente de fragilidade econômica e escassez de postos de trabalho, muitas pessoas precisam recorrer aos aplicativos em busca de renda e são forçadas pela situação a abdicar de seus direitos trabalhistas. 

Esse fenômeno, também chamado de uberização do trabalho, é uma consequência deletéria dos avanços tecnológicos e mudanças de hábitos. Contudo, essa fragilização das relações trabalhistas pode – e deve – ser enfrentada por todos os setores da sociedade. E a resposta pode estar justamente no cooperativismo. Quer entender melhor? Então boa leitura!

Trabalho digital e plataformas: a uberização do trabalho

As plataformas digitais aumentaram significativamente as demandas por certos serviços e, consequentemente, por profissionais prestadores desses serviços. É o caso dos motoristas de aplicativo e dos motoboys que fazem entregas de comida e encomendas em geral.

O problema é que esses aplicativos criaram um novo tipo de relação de trabalho informal, sem regulamentação e vínculo entre os trabalhadores e as plataformas. Na prática, o que acontece é o seguinte:

  • Por um lado, em termos legais, eles são trabalhadores autônomos e não possuem vínculo empregatício com as plataformas.
  • Por outro, a geração de renda é intrinsecamente ligada às plataformas, e os trabalhadores ficam dependentes delas para que possam trabalhar.
  • Além disso, os trabalhadores não têm acesso a seguros, convênios e proteção aos riscos associados à profissão, como acidentes. 

Ou seja: a precarização do trabalho digital é fruto de um novo cenário em que não existe regulamentação específica e efetiva. As leis em vigor não foram elaboradas levando em conta o surgimento dessa nova lógica do trabalho e, com isso, como de costume, a corda arrebenta para o lado mais fraco. 

O impacto da pandemia na precarização do trabalho

As plataformas, que já dominavam setores importantes da economia, ganharam um novo protagonismo com a pandemia de Covid-19. E isso acentuou ainda mais a situação de precarização do trabalho relacionada a elas. Isso se deu, sobretudo, por dois motivos:

  • Piora no cenário econômico: a pandemia causou impactos marcantes na economia global, que desacelerou de forma acentuada e causou a maior crise em mais de um século, segundo o Banco Mundial. Essa crise gerou um aumento drástico nas desigualdades sociais, prejudicando os trabalhadores que não tiveram acesso à educação e os autônomos de forma mais severa. 
  • Aumento na demanda: por outro lado, o isolamento social impulsionou o uso das plataformas, sobretudo as de delivery. Com isso, esses aplicativos precisaram recrutar mais entregadores. Com o desemprego em alta, muitas pessoas aderiram ao trabalho precarizado dessas plataformas como única opção para a obtenção de renda. 

A partir desses fatores, o Brasil registrou taxas recordes de trabalho informal. Esse fenômeno, inclusive, resistiu ao auge da pandemia e a informalidade seguiu alcançando números sem precedentes. Em 2022, o IBGE registrou quase 40 milhões de trabalhadores informais.

Consequências da precarização do trabalho

A precarização do trabalho resulta na fragilidade do trabalhador, na ausência de acesso a direitos trabalhistas e na dificuldade sistêmica de lutar por melhores condições. A falta de um contrato de trabalho e de uma rede de apoio coloca, assim, o trabalhador em situações complicadas.

A remuneração é uma delas. Essas plataformas pagam por entrega ou trajeto, de forma que o trabalhador precarizado não tem garantia de remuneração e não consegue fazer um planejamento financeiro prévio. Além disso, alguns desses aplicativos trabalham com precificação dinâmica, o que aumenta ainda mais a imprevisibilidade de renda.

Dessa forma, os profissionais, muitas vezes, precisam se submeter a jornadas extenuantes para atingir suas metas de ganhos para o dia, até mesmo colocando a própria integridade em risco.

Ademais, em casos de acidentes ou problemas de saúde relacionados ao trabalho, eles não têm acesso a uma rede de apoio adequada. Caso sejam bloqueados pelas plataformas, ainda por cima, não têm acesso ao seguro desemprego. No longo prazo, também ficam de fora da rede de seguridade social. 

Cooperativismo de plataforma: uma alternativa à precarização do trabalho

Um dos principais motivos para a existência de um ecossistema de inovação cooperativista é, justamente, a necessidade de tornar a economia digital mais solidária. As soluções tecnológicas e digitais já estão integradas no cotidiano das pessoas, isso não vai mudar. O cooperativismo, contudo, pode deixar essa realidade mais humana e justa.

O trabalho nas plataformas digitais tem uma lógica diferente e própria, que não é contemplada pelas leis e regulamentações atuais. É necessário, portanto, um novo modelo de negócios que empodere os trabalhadores, tornando-os protagonistas da economia de plataforma. E é aí que o cooperativismo entra. 

O cooperativismo de plataforma, com efeito, surgiu justamente para dar uma alternativa à uberização do trabalho. O conceito foi desenvolvido pelo professor Trebor Scholz, da The New School, em Nova York, em 2016, com seu livro que virou referência no tema

De forma resumida, o cooperativismo de plataforma é um modelo de negócios em que os trabalhadores são os donos da plataforma por meio da gestão cooperativista. Desta forma, reúnem a agilidade das plataformas e melhor do cooperativismo, como a gestão democrática e propriedade compartilhada, direcionando a receita para os profissionais, sem intermediários.

Panorama: cooperativismo de plataforma contra a uberização do trabalho no Brasil

O relatório Fairwork Brasil 2021: Por Trabalho Decente Na Economia De Plataformas aponta que as principais plataformas do Brasil falham em garantir direitos básicos e boas condições para os trabalhadores. O levantamento avaliou pontos como remuneração, contratos, gestão e representação e sugere o cooperativismo de plataforma para enfrentar essa realidade. 

No Brasil, o cooperativismo de plataforma ainda passa por um processo de amadurecimento, mas está ganhando espaço. Além das iniciativas práticas, já existem algumas iniciativas de incentivo, conteúdo e pesquisa sobre o modelo. No documento Propostas para um Brasil mais cooperativo 2023-2026, o Sistema OCB defende que o futuro do setor passa pelo apoio e estímulo ao cooperativismo de plataforma. 

O cooperativismo de plataforma ainda tem diversas barreiras para superar e se estabelecer como uma forte alternativa à precarização do trabalho. Rafael Zanatta, mestre pela Faculdade de Direito da USP e diretor da Associação Data Privacy de Pesquisa apontou que as coops ainda têm dificuldades com tarefas relevantes para o sucesso das plataformas, tais quais:

O cooperativismo, portanto, ainda é um modelo de negócios nascente em busca de soluções para ganhar escopo e escalabilidade. Essa jornada, contudo, já soma iniciativas ao redor do mundo que surgiram unindo a tecnologia e os princípios do cooperativismo para encarar a uberização do trabalho. 

CoopCycle: federação de cooperativas e software para entregadores

Sediada na França, a CoopCycle é uma federação que reúne mais de 60 cooperativas de entregadores para enfrentar a precarização do trabalho e fomentar a criação de plataformas cooperativas que pudessem melhorar a distribuição dos resultados da operação.

Para isso, a CoopCycle propôs o desenvolvimento da tecnologia e a proteção da plataforma digital, dando autonomia às cooperativas de entregadores e proporcionando a soberania tecnológica. Assim, os entregadores não dependem de soluções tecnológicas licenciadas para suas cooperativas.

Dessa maneira, caso um grupo de entregadores decida criar sua própria cooperativa de plataforma, não é mais necessário desenvolver um software novo nem buscar soluções pouco transparentes no mercado. Basta que a cooperativa se filie ao CoopCycle para utilizar o aplicativo e, ainda por cima, receber assessoria jurídica. 

Mensakas proporciona entregas com remuneração justa aos cooperados

Um dos maiores casos de sucesso no uso do CoopCycle é a cooperativa espanhola Mensakas, que nasceu em 2018 com o objetivo de melhorar a vida dos entregadores. Fundada por um grupo de 30 entregadores após uma greve contra uma plataforma inglesa forte no país, a Mensakas tem a proposta de apresentar um modelo transparente e justo.

Para isso, então, a cooperativa aderiu ao CoopCycle e investiu no aprimoramento da ferramenta. Desde 2018, então, a Mensakas conseguiu consolidar seu trabalho em três frentes na cidade de Barcelona: a entrega de encomendas, o delivery de comida e o serviço de entrega de última milha.

Plataforma para trabalho digno dos catadores: o Cataki

Os princípios e ideias por trás do cooperativismo de plataforma também podem ser a resposta para a precarização do trabalho em outros setores. Essa é a proposta, por exemplo, da plataforma brasileira Cataki, que conecta catadores de lixo reciclável aos clientes por meio de um aplicativo.

Criado pela Pimp My Carroça, uma organização não governamental com sede em São Paulo, o Cataki levou a categoria de catadores para a economia digital através de uma plataforma que gera renda e dá dignidade aos catadores, ao mesmo tempo em que beneficia toda a sociedade. 

Dados mostram que o Cataki resultou em aumento de renda para os catadores que ingressaram na plataforma. Além disso, os catadores conseguem planejar suas atividades a partir das demandas que surgem pelo aplicativo. Apesar de não ser uma cooperativa, o Cataki emana diversos princípios do cooperativismo de plataforma.

Conclusão: empreendedorismo cooperativista contra a precarização do trabalho

As plataformas são oriundas da inovação proporcionada pelas novas ferramentas digitais e avanços tecnológicos. O cooperativismo, então, deve fazer parte desses movimentos de inovação para torná-la mais solidária e compartilhada.

Um ecossistema de inovação e empreendedorismo cooperativista, portanto, é um aliado nessa jornada em prol da dignidade em meio ao crescimento da precarização do trabalho. O cooperativismo, assim, tem o papel de humanizar a economia de plataformas e lutar contra o fenômeno da uberização.

O RadarCoop surgiu para impulsionar o ecossistema de inovação e empreendedorismo cooperativista por meio da conexão entre quem contribui para uma economia solidária e inovadora.  A iniciativa é uma realização da Coonecta com o Complexo.lab e conta com apoio da Sicredi Pioneira e do Sicoob Credicitrus.

Gustavo Bezerra

Por Gustavo Bezerra

Jornalista pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo e Digital. Foi integrante do programa Estagiar da TV Globo. É apaixonado por literatura. Atualmente, é redator da Coonecta.