Liga Coop: cooperativas de mobilidade urbana como solução para a precarização do trabalho

por | 02-08-23

A era digital criou um novo tipo de precarização do trabalho. Os aplicativos de transporte, como Uber, são os principais protagonistas dessa realidade que assola muitos trabalhadores. Mas há luz no fim do túnel – e ela tem tudo a ver com a inovação no cooperativismo. A LIGA COOP propõe um futuro mais justo para os profissionais da mobilidade urbana, proporcionando melhores condições e um horizonte positivo para toda a sociedade.

As transformações decorrentes da Nova Economia – baseadas na digitalização dos negócios, globalização e conectividade em massa – modificaram consideravelmente nossos hábitos de consumo. Consequentemente, esse fenômeno criou uma enorme gama de novos produtos e serviços.

“Economia Digital”, “Economia de Plataforma” e “Economia do Compartilhamento” são classificações comumente utilizadas na explicação das mudanças que estamos vivenciando.

Alguns ofícios e profissões estão desaparecendo por perderem utilidade ou como consequência da inovação tecnológica. Ao mesmo tempo, a adaptação e adesão ao ambiente digital têm feito surgir novas formas de trabalho.

A realização de transporte privado de passageiros com uso de veículos particulares através de um aplicativo (plataforma) é, possivelmente, o principal símbolo dessa nova economia.

A inovação e a disrupção tecnológica experimentada com o surgimento de poderosos softwares impressionaram a todos. Com isso, diversos indivíduos, até mesmo os marginalizados, se tornaram atores econômicos que atuam “no próprio negócio” e “em proveito próprio”. Essa inserção social ganhou velocidade e gerou empatia em todo mundo, inclusive no Brasil.

Um nova era da mobilidade urbana

Com a entrada da Uber no mercado nacional, em 2014, testemunhamos a reinvenção do transporte urbano. Os taxistas se opuseram e conflitos, com direito a episódios de violência, surgiram em todo país. Além disso, uma importante disputa jurídica, originada de forte pressão da categoria, aconteceu, mas em vão. Em 2019, afinal, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela constitucionalidade da atividade realizada pela Uber (ADPF 449; RE 1054110).

E essa “atividade” continuou ganhando escala e se disseminando na velocidade dos “clicks” como um novo modelo de “transporte”. A tecnologia disponibilizada era muito sedutora. Milhares de pessoas trocaram o transporte coletivo e seus veículos próprios pela facilidade de um transporte executivo com preços acessíveis.

Portanto, o uso do transporte coletivo ou veículo próprio tornou-se uma alternativa apenas “se o Uber não estiver disponível”. O mercado de transporte e a mobilidade urbana se transformaram. Aplicativos similares surgiram, mas o predomínio da gigante Uber se tornou cada vez mais forte.

Na outra ponta, milhares de trabalhadores, na sua maioria com formação e ofícios em profissões próprias, passaram a “dirigir” o próprio negócio. Seja com dedicação integral ou apenas usando o tempo livre para fazer um “bico”. O uso do aplicativo Uber para obter uma renda extra mostrou-se uma alternativa fácil na volta do trabalho ou durante o tempo livre. O “retorno financeiro” quase imediato tornou-se sedutor e viciante. Muitas pessoas, sem outra alternativa, passaram a depender da utilização da plataforma para manter seu próprio sustento e de sua família.

A precarização dos motoristas de aplicativo

Surge então uma nova categoria profissional: os motoristas de aplicativo.

No entanto, as promessas de autonomia, ganho fácil e aproveitamento financeiro do próprio tempo (fortemente disseminada) não se concretizaram. Os motoristas de aplicativo tornaram-se cada vez mais dependentes das plataformas, submetidos a termos e condições inegociáveis. A cada atualização de software e dos seus “termos de uso”, eles ficaram ainda mais presos ao uso do aplicativo das “Big Techs”, sobretudo a Uber.

Gradativamente, esses profissionais passaram a dedicar mais horas de trabalho para manterem os ganhos. Regras de reputação, premiações e do pagamento das corridas se tornaram cada vez mais complexas. Os descontos das taxas seguiram progressivamente aumentando.

É a “inovação tecnológica” utilizada para aprisionar os motoristas, chamados de “parceiros”, em uma cruel espiral de dependência e exploração. A triste lembrança das precárias condições humanas e sociais da Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX parece se repetir no início do século XXI.

A consolidação de um problema social

Mas as tecnologias desenvolvidas pelas “Big Techs” também podem ter utilidade para o bem. Através da formação de grupos no WhatsApp, motoristas de aplicativo se reúnem para compartilhar suas dores e trocar experiências.

Com isso, associações são criadas, influenciadores digitais e representantes políticos da nova classe surgem. Protestos para reivindicar melhores condições e mais segurança e melhores ganhos são organizados. Porém, perante as grandes plataformas, os motoristas de aplicativo são “parceiros”, aderem e aceitam os “termos e condições de uso” da tecnologia, assumem o risco da própria atividade.

As “Big Techs”, contudo, não têm qualquer responsabilidade sobre os trabalhadores. Afinal, eles podem desinstalar e deixar de usar os aplicativos quando quiserem. São “autônomos”, “nanoempreendedores”.

Como um traficante que oferece o “prazer da ilusão” de um entorpecente à sua inexperiente vítima, os “viciados” pagam o preço necessário para usar o aplicativo.

E eles já estão dependentes. É dali que vêm as viagens e corridas. E é dessas corridas que vem o dinheiro para sustento básico, para sua alimentação, o leite e, talvez, a carne. Frequentemente, os valores percebidos nem sempre são suficientes para o mínimo, devendo trabalhar ainda mais para suprir suas necessidades e garantir o abastecimento e a manutenção do veículo.

O motorista de aplicativo está tão preso a esse sistema da plataforma, que o temor em ser banido é uma angústia constante. A possibilidade de deixar de usar o aplicativo está fora de cogitação. Afinal de contas, é dali que vêm as corridas e, consequentemente, seus rendimentos.

As “programações” e “condicionamentos” do software, do algoritmo, estão profundamente impregnadas no inconsciente da maioria dos motoristas.

Um problema social se desenha.

Problemáticas da nova mobilidade urbana e em pauta

Sem enfrentar o problema ou buscar uma solução, ao estilo “Pilatos”, através da Lei 13.640 de 26 de março de 2018, a União delegou aos Municípios e Distrito Federal o desafio de legislarem sobre um tema tão complexo (Lei 12.587/12, art. 11-A).

Alguns poucos municípios se esforçaram. E esses poucos, pouco fizeram. Instalou-se um cenário onde existem dezenas (quiçá centenas) de legislações diferentes sobre o mesmo tema, porém sem solução para o verdadeiro dilema: a precarização e exploração do trabalho dos motoristas de aplicativo.

  • O problema é nacional. Temos uma grande quantidade de trabalhadores “dependentes”, em sua maioria, de um único aplicativo (Uber).
  • O problema é social. Milhares de trabalhadores não conseguem se desvencilhar do “sinal” dado pelo aplicativo, quando a programação lhes oferece uma “corrida”.
  • O problema é econômico. Bilhões e bilhões de reais são faturados por essas grandes corporações e enviados para instituições financeiras fora do país.

Com as devidas ressalvas pela comparação, vivemos sim uma doença social: como “parasitas”, as plataformas tecnológicas das Big Techs são programadas para extrair (ou seja, explorar) a força de trabalho dos motoristas de aplicativo, uma nova categoria de trabalhadores que definha e sucumbe ao oligopólio tecnológico.

Economias locais são drenadas, históricos problemas sociais agravam (especialmente de segurança) e oneram cada vez mais o Poder Público, sem qualquer contrapartida ou compensação equivalente ao dano que causam. E isso não irá mudar.

Não irá mudar se nos concentrarmos nos “sintomas” e deixarmos de ir à fonte do problema!

Cooperativismo como alternativa a uma mobilidade urbana mais justa

O tratamento dessa “doença social” não é fácil, mas o antídoto existe: o motorista de aplicativo ser “dono” e “participante ativo” do negócio e da plataforma! Os trabalhadores devem ter, ao menos, a autonomia prometida, uma remuneração digna e segurança.

Se ele tiver voz e puder decidir como será a programação do aplicativo, quando a tarifa paga pelo usuário será maior e/ou desconto da tarifa dos motoristas, etc. Se o motorista for um participante ativo do negócio, mesmo que indiretamente, detiver o controle da tecnologia e da plataforma: aí sim, estaremos no caminho rumo à solução do problema.

E para os motoristas de aplicativo alcançarem esse “empoderamento”, não existe outra alternativa senão o cooperativismo!

Um modelo centenário para a economia digital

O cooperativismo é uma doutrina ancorada em valores, princípios e um conceito próprio, tudo internacionalmente convencionado. No Brasil, suas bases gerais estão na Lei 5764/71 (Lei Geral das Cooperativas).

As cooperativas, com suas estruturas lógicas estabelecidas pelos Pioneiros de Rochdale, em 1844, acompanham a evolução da sociedade, incorporam atualizações econômicas e sociais, aderem a novas tecnologias e revelam uma essência atemporal.

Atualmente em nova roupagem, como no Cooperativismo de Plataforma, congrega os mesmos valores e princípios tradicionais do modelo na contemporaneidade. Assim, o cooperativismo proporciona a convergência do trabalho no ambiente digital (através de plataformas tecnológicas) com a digna contraprestação financeira, gestão democrática, participação, autonomia e disponibilização de benefícios.

Outras reivindicações por melhores condições aos trabalhadores das plataformas têm surgido. Porém, elas pregam uma regulamentação estabelecendo direitos semelhantes aos garantidos ao trabalhador celetista, o que não atinge a essência do problema. Esse não é o caminho, pois  criará um vácuo que nunca será preenchido.

O trabalhador motorista de aplicativo continuará dependente de algo a lhe ser entregue por terceiros. Continuará sendo o “parceiro”, um coadjuvante, e os resultados da “mais-valia” (utilizando um termo econômico) de seu trabalho através do aplicativo continuará dependente e submisso à programação dos algoritmos.

Mas essa garantia de “direitos mínimos” não lhe trará dignidade? Talvez – até certo ponto. Porém, nunca como exigido pela nova economia, cada vez mais baseada na autonomia e liberdade individual.

Um abalo necessário nas estruturas do trabalho digital

As estruturas da sociedade estão mudando, a Economia do Compartilhamento e a Economia Solidária podem ser estruturadas em harmonia, vivenciadas de forma plena por meio do Cooperativismo.

Tal como ocorreu no contexto social dos tecelões de Rochdale no século XIX, os trabalhadores se socorrem do cooperativismo para fazer frente à precarização e à exploração. O surgimento das cooperativas de mobilidade urbana (motoristas de aplicativo) nos últimos anos são exemplos disso.

Mas o caminho é espinhoso e muita coisa ainda precisa ser feita. Nesse contexto, a empatia e a adesão das comunidades às iniciativas cooperativistas são fatores importantes. É essencial que tanto a Administração Pública quanto a sociedade num todo voltem seus olhos para o cooperativismo. O apoio se faz necessário.

É preciso entender o cooperativismo não só como um empreendimento, mas também como um negócio social comprometido com pessoas e comunidades. Somente assim, superando o fantasma da ignorância e do desconhecimento, a alternativa mais viável (talvez única) para os problemas sociais, econômicos e humanitários causados pelas grandes corporações serão resolvidos — ou, na pior das hipóteses, amenizados.

LIGA COOP: protagonizando a mudança necessária do trabalho na mobilidade urbana

A organização espontânea dos motoristas de aplicativo em cooperativas singulares (Cooperativas de Plataforma) desenha uma alternativa real e viável no enfrentamento e solução dos problemas mencionados anteriormente.

Por esse motivo, a recente fundação da Federação Nacional das Cooperativas de Mobilidade Urbana (LIGA COOP) merece toda a atenção e deferência do movimento cooperativo. Na verdade, todos simpáticos e solidários à causa dos motoristas de aplicativo, devem direcionar seus holofotes, atenção e apoio a essa iniciativa.

A LIGA COOP  é uma Federação Cooperativa (art. 6º, II da Lei 5764/71) constituída a partir da unidade de dores e da busca por soluções aos problemas dos motoristas de aplicativos, organizados em cooperativas de plataforma singulares. O objetivo inicial e principal da federação é disponibilizar e operacionalizar uma plataforma tecnológica – ou seja, o aplicativo – com amplitude nacional.

Esse aplicativo teria uma base de dados única com usuários/clientes de todas as cooperativas. Assim, usuários e clientes de uma cooperativa em determinada localidade – por exemplo, em Belo Horizonte/MG – poderão utilizar o mesmo aplicativo quando estiverem em Gramado/RS. Porém os resultados das corridas realizadas em Gramado/RS ficarão para os cooperados e para a cooperativa que ali atuam. 

Da mesma forma, se um usuário do aplicativo morador de Gramado/RS for para Imperatriz/MA, poderá solicitar suas corridas utilizando o mesmo aplicativo. Neste caso, os resultados dessas corridas ficarão com os cooperados e a cooperativa de Imperatriz/MA.

Através da Federação, as cooperativas ganham força estratégica, de escala, empoderando e beneficiando os cooperados (motoristas de aplicativo), suas cooperativas singulares e respectivas comunidades onde atuam.

O modelo cooperativo não necessita mais ser provado ou experimentado. Historicamente, suas estruturas possibilitam um conjunto de pessoas, movidas por interesses comuns (econômicos, sociais e/ou culturais) unirem forças para fazerem frente a situações de crise ou condições de trabalho predatórias.

E o surgimento espontâneo de sociedades cooperativas, formadas por motoristas de aplicativo em vários Estados do país, inclusive em importantes centros urbanos, demonstram a resiliência e adaptação do modelo às novas tecnologias.

Mas essas cooperativas, como quaisquer outras, devem seguir o modelo ideal de estruturação e organização. Esse modelo ideal é o “modelo legal” – isto é, aquele que segue os procedimentos e ritos da lei, tem seu registro nas Juntas Comerciais, associando-se à respectiva organização representativa.

A cooperativa não basta ser formalmente criada, mas também deve funcionar de acordo com seus princípios, valores e matriz doutrinária. A declaração da “Identidade Cooperativa”, anunciada pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI) em 1995, estabelece Notas de Orientação para a legítima empresa cooperativa, o que é seguido em todo mundo. No Brasil, é a Organização das Cooperativas do Brasil (OCB), entidade membra da ACI e órgão máximo de representação das cooperativas que, além de outras atribuições, tem a responsabilidade pela preservação do sistema cooperativo e de sua identidade.

A atualidade na resolução dos problemas sociais, promovendo a prosperidade econômica e empoderamento dos indivíduos, sempre será alcançada quando os indivíduos percebem nas cooperativas a efetiva realização da expressão popular “a união faz força”.

A criação da “LIGA COOP” é resultado desse entendimento. E a solução está desenhada, sendo construída. Se muitos “fracos” fazem um poderoso, quando todos ajudam, nada custa.

Que venham as cooperativas e, junto com elas, o fim da precarização e da exploração dos motoristas de aplicativo!

Referências:

  • Lei 12.587/12
  • Lei 5764/71
  • ADPF 449
  • RE 1054110 
  • “Cooperativismo de Plataforma – O perigo da Uberização: O bem comum como alternativa à precarização do trabalho e da vida” – Scholz, Trebor (2016).
  • “A economia do compartilhamento: O impacto dos negócios baseados em plataformas de consumo colaborativo” – Botsman, Rachel, Roo Rogers (2011).
  • “Cooperativismo: Uma alternativa sustentável de desenvolvimento” – Barboza, Luiz Alberto Ferla, Iara Teresinha Pastore (2014).
  • “Cooperativismo e Economia Solidária: Inovação Social no Campo da Economia” – Borba, José A., Elicleide Moura da Silva (2017).
  • “A autonomia do trabalhador nas plataformas digitais: a necessidade de repensar a regulação do trabalho na economia do compartilhamento” – Rodrigues, Lívia Sanches (2018).
  • “Platform Cooperativism: Challenging the Corporate Sharing Economy” – Oursler, Nathan Schneider (2016).
  • “The Uberization of Work: The Driving Force behind the Gig Economy” – Kessler, Ryan (2019).
  • “Cooperatives and the Future of Work” – Restakis, John (2019).
  • “The Sharing Economy and the Relevance of Co-operatives” – Scholz, Trebor (2014).

 

Fernando Lucindo

Por Fernando Lucindo

Advogado especialista em Cooperativismo, Advocacia Digital e Blockchain; Assessor Jurídico da Federação Nacional das Cooperativas de Mobilidade Urbana – LigaCoop; e Embaixador do RadarCoop